sábado, 7 de novembro de 2009

O Velho K.

O velho saiu de sua casa no mesmo horário dos dias anteriores, exatamente as três e quarenta e seis da tarde. O Sol já estava brilhando em um céu pontilhado por nuvens cinza e repolhudas.
Ele andava devagar, arrastando os pés. Todos que o viam andar achavam que deveria ser decorrência da idade já bastante avançada, mas na verdade era pelo simples fato de que em suas pernas existiam feridas que nunca curavam, e se não fossem as bandagens amareladas, que ele lutava em tentar esconder com meias sociais altas, um pus fétido escorreria pelas calçadas.
O velho K. passou lentamente por uma janela de vidro e se examinou por um instante.
Segundo ele, estava elegante. O mesmo terno azul marinho que vinha usando já a semanas, a camisa social branca, que já não era mais branca, e sim amarelo sujo, e a gravata no mesmo tom do terno, presa ao pescoço com um nó simples.
Ele ajeitou a gravata e passou as mãos suarentas pelos poucos cabelos que lhe adornavam a cabeça. Deu uma rápida coçadinha em uma ferida que havia em sua testa, retirando com a unha a casca que já começava a se formar. Limpou a unha nos dentes amarelos e seguiu seu caminho, deixando para trás dois atendentes da loja, cujo vidro tinha lhe servido de espelho, ligeiramente enjoados.
O Velho K. levou cerca de vinte minutos para fazer um percurso que qualquer outra pessoa levaria menos de dez. Com seus passos miúdos e com sua mente mentalizando o que teria que fazer no destino que almejava, quase foi atropelado por um motociclista que fez a curva na esquina em velocidade um pouco elevada.
-Acorda!-gritou o motociclista mal educado.
O Velho K. deu um pequenino, pequenino mesmo, salto para trás, mal movendo os pés do chão. Em um gesto de protesto, ele ergueu a sua mão tremula no ar ameaçando esbofetear o motociclista.
Mas nem esse quase atropelamento fez o Velho K. desistir de seu objetivo. Ele tinha que seguir, ele precisava. Obstinação era seu nome.
Ele voltou para a calçada, para longe dos velozes veículos automotores, estava seguro contra atropelamentos. Ele respirou aliviado. E quase foi atropelado por uma criança em um triciclo.
-Desculpa vô!- gritou o pequeno menino.
-Não se tem mais respeito!- gritou o Velho K. com sua voz tremida- Não se pode mais nem andar pelas calçadas sem que esses malucos tentem passar por cima da gente! No meu tempo... - mas ele se calou ao ver que o menino já ia longe com o seu triciclo.
Ele amarrou a cara e voltou a seguir o seu caminho. Agora faltavam poucos metros para chegar ao seu destino.
Com muita dificuldade o Velho K. chegou onde queria. Venceu os dois degraus e entrou na cafeteria enfumaçada e mal cheirosa. Finalmente tinha chegado ao seu destino.
Ele caminhou até sua mesa de costume, a que ficava bem no centro da loja, onde ele podia ver todos e todos podiam vê-lo. Com dificuldade ele se sentou na cadeira e puxou a delicada mesa de tampo de vidro para perto.
Um rapaz, no auge de seus vinte e poucos anos, se aproximou, a contragosto, para atendê-lo. O rapaz fez cara de nojo ao sentir o cheiro que exalava do corpo do Velho K. Era um cheiro acre, uma mistura de urina com cheiro de ferida infeccionada.
-Pois não?- perguntou o rapaz tentando não deixar visível o quanto queria se ver longe dali.
O Velho K. então ergueu a mão no ar, com ligeira dificuldade e começou a balançar o dedo indicador e a dizer:
-Um leite morno, dois envelopes de açúcar, e um copo de água da torneira, normal sem gás.
O rapaz anotou o pedido e em pouco tempo já estava de volta com o pedido em uma bandeja bege grande, que a depositou em frente ao Velho K. desejando não ter feito isso, pois sabia o que iria acontecer.
E o que se seguiu foi algo surpreendente.
Primeiro foram os envelopes de açúcar. Foram massacrados. O Velho K. os pegou sem piedade e sacudiu-os com violência rasgando-os ao meio sem piedade, espalhando seu conteúdo imaculado por toda a bandeja. Pouco foi parar no leite morno. Os envelopes foram picados em pedaços miúdos e depositados na bandeja como restos de soldados mortos em batalha.
A colher foi a sua próxima vítima. Ele a pegou com seus dedos ensebados e a mergulhou no leite e começou a mexer vigorosamente. Não se soube se a sua intenção era quebrar a colher ou arrancar o fundo da caneca. Mas novamente a bandeja foi à principal vítima, sendo assolada por golpes de leite quente que se juntavam aos restos dos envelopes e açúcar numa tentativa frívola de se salvar.
Então, o pior aconteceu. O Velho K. apanhou o inocente guardanapo de papel branco.
O rapaz que o atendeu chegou a ficar com a respiração suspensa por um tempo. Ele já sabia o que estava por vir.
O Velho K. desdobrou o guardanapo e o levou até o nariz. Reunindo forças em seus pulmões, ele limpou o nariz produzindo um grande barulho. Voltou a dobrar o guardanapo e resolveu secar os lábios, depositando-o cuidadosamente dobrado em um pequeno quadrado sob a caneca de leite.
Após a preparação, o Velho K. começou a beber o seu leite. Sorveu um gole. Achou um pouco quente demais. Apanhou a sua água e virou um pouco na caneca, e boa quantidade na bandeja. Bebeu um pouco mais e voltou a completar a caneca com a água. E assim foi até não ter mais leite.
Fazia um pouco de calor. O Velho K. suava ligeiramente devido ao esforço de massacrar as inocentes coisas de sua bandeja. Ele voltou a apanhar o seu guardanapo e o passou pela testa suada. Ainda não se sentia refrescado. Ele então notou que sobrara um pouco de água no copo. Não pensou duas vezes. Mergulhou o guardanapo na água, dando-lhe uma pequena torcida para retirar o excesso. Voltou a passá-lo pela testa, agora sim se sentindo mais refrescado. Fez isso mais vezes, até a água do copo ficar turva.
Foi sob o olhar assombrado do rapaz que o Velho K. terminou seu ritual.
Após analisar a água que restava no copo, o Velho K. a sacudiu, como se tentando fazê-la voltar a ficar cristalina, e em seguida a bebeu de um gole só.
Sentindo-se satisfeito, o Velho K. se levantou e foi até o caixa, onde pagou a sua conta com um cheque, que ele pediu que segurassem até segunda-feira. Com profundo alívio por ele estar saindo da loja, o rapaz aceitou o cheque.
O Velho K. saiu da cafeteria, deixando para trás seu cheiro de azedo e os restos de sua batalha com a bandeja.
O rapaz se aproximou da mesa em que o Velho K. estivera e, com profundo nojo, apanhou a bandeja depositando-a na pia.
Cheio de repulsa, o rapaz apanhou uma garrafa de álcool e jogou por cima da louça talheres e o guardanapo. Pode parecer besteira, mas o guardanapo gemeu baixinho. Assustado, o rapaz se aproximou um pouco do guardanapo e percebeu que ele se mexia levemente. Receando ser algum inseto nocivo, ele jogou um pouco mais de álcool sobre o guardanapo, que rosnou mais alto
Do lado de fora da cafeteria, o Velho K. sorriu maliciosamente quando ouviu o grito de susto do rapaz e o som de luta. Um novo hospedeiro havia sido escolhido.
Alex Petiz
Conheceu o Velho K. em carne osso e perebas.

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